quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

“Expulsemos os Poderosos”: Sobre o Egito e a Ideia Universal de Liberdade

Nas últimas semanas, manifestantes egípcios tiraram o sono não só do ex-ditador Husnir Mubarak e de jornalistas da mídia internacional, mas também de opressores de todo o mundo – do Oriente Médio em particular – ao transformarem a Praça Tahrir no epicentro de um movimento organizado de autogestão popular.

A vivência em um planeta repleto de desigualdades e adormecido pela opressão da coerção e, mais importante para o argumento, do consenso fez possível ter fé na morte dos movimentos populares de caráter libertador, executados pelos mesmos batalhões de coveiros que enterraram a História. Desta maneira, no lugar de uma revolta popular, o tentou-se fazer crer numa massa de manobra guiada por radicais islâmicos que apenas intentariam destilar seu ódio contra o “ocidente”, seguindo o rumo da substituição simplista da morte da História pelo Choque de Civilizações.

Numa análise dos recentes acontecimentos publicada no site do The Gardian no dia 10 de fevereiro, Slavoj Žižek identificou as causas do movimento com o que disse se chamar, de maneira platônica, da ação misteriosa de uma ideia eterna de liberdade, justiça e dignidade. Desta maneira, o levante seria algo universal, possibilitando que várias pessoas pelo mundo se identificassem com ele, reconhecendo seus motivos sem a necessidade de grande conhecimento prévio do contexto político-social do Egito. Estou mais interessado em pensar na eternidade das ideias de liberdade, justiça e dignidade no próprio Egito.

Há um documento literário bastante conhecido pelos egiptólogos por ser, talvez, a única fonte de uma revolta popular no Egito Antigo. Chama-se Admoestações de Ipu-Ur e provavelmente data de cerca de 4100 anos atrás, num momento da história faraônica conhecido como Primeiro Período Intermediário, em virtude da existência de uma crise hegemônica da monárquica e de revoltas sociais, em muitas maneiras similares aos acontecimentos dos últimos dias. Neste período de ebulição social, um nobre chamado Ipu-Ur escreveu o texto criticando a fraqueza do faraó e o estado de “desordem” em que se encontrava o país.

A intensidade das revoltas foi tão forte e abalou de tal forma a concepção de um consenso da ideologia da monarquia divina, que certos egiptólogos acreditam que o texto não reflete a realidade, sendo apenas um exercício narrativo para demonstrar a dualidade ordem x caos, fundamental naquela visão de mundo. Este me parece um argumento característico dos já ditos coveiros da História.

O que importa é que ao ver tudo que aconteceu no Egito ultimamente não pude deixar de pensar nessa revolta de milênios atrás e na retomada do desejo de liberdade e justiça social pelo povo daquela terra. Gostaria muito de saber se eles chegaram a reivindicar este texto! Seria lindo!

Segue um trecho que deveria servir como bandeira aos manifestantes:


Em verdade o Nilo inunda (mas) ninguém lavra para si,

(pois) todos dizem: “Não sabemos o que sucederá ao país”.

Em verdade as mulheres estão estéreis, nenhuma concebe:

Khnum não molda (mortais) por causa da situação do país.

Em verdade os pobres passaram a exibir luxo,

e o que não podia ter sandálias possui riqueza.

Em verdade os criados estão vorazes

e o poderoso não mais compartilha [de alegria] com sua gente.

Em verdade [os corações] estão violentos, a calamidade varre o país,

há sangue por toda parte, não faltam mortos:

as faixas das múmias clamam para que se chegue a elas.

Em verdade muitos mortos são atirados ao rio:

a correnteza virou sepultura e o Lugar Puro virou torrente.

Em verdade os ricos deploram e os pobres exultam;

Cada cidade diz: “Expulsemos os poderosos!”.

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