quinta-feira, 6 de maio de 2010

Direto Trabalhista e Direito de Propriedade para Direita Ruralista Brasileira

Notas sobre a entrevista da Sen. Kátia Abreu (DEM-TO) na Veja de 28 de Abril de 2010.

Não acho que ainda existam dúvidas sobre o caráter classista de direita da Veja. Criticá-la já é, para a esquerda, chutar cachorro morto, mesmo que ainda seja provavelmente a mídia escrita mais influente do país. Se fosse uma matéria eu não perderia meu tempo sequer lendo, mas quando vi a chamada para a entrevista das amarelas menos em cima do muro da história, tive que fazer o sacrifício.

Há muito já queria ler algo sobre a Sen. Kátia Abreu, líder da bancada ruralista, que conhecia de conversas sobre os ataques ao MST. Mesmo com todas essas referências sobre a revista e a entrevista, ainda me surpreendi com o destaque da primeira página: “A norma usada pelo governo para definir trabalho escravo é uma punição à existência da propriedade privada no campo”. Caramba, chegaram a este nível?!?!? Atacar o trabalho escravo é atacar a propriedade privada no campo, achei que essa carta já tinha saído das mãos da direita desde a crítica à Declaração de Independência dos EUA. Pode isso, Arnaldo?!?!

Por essas e outras, fiz questão de fazer uma leitura mais atenta da entrevista.

A entrevista orbita em torno de dois argumentos/críticas principais: 1) a forma errada de se ver a produção do campo brasileiro, que, segundo ela, não está voltada para exportação e sofre com a supervalorização da pequena propriedade familiar, prejudicando tanto o agrobusiness quanto os médios produtores; 2) há problemas sérios na legislação voltada para o campo e no seu cumprimento, que prejudicam o desenvolvimento do setor.

A primeira questão aparece menos na entrevista de três páginas, cujas perguntas direcionam-se para os assuntos mais interessantes para a revista, a manutenção da propriedade privada e a crítica ao governo Lula em época de eleição. Ainda assim, sobra espaço para a senadora acusar o IBGE de produzir um censo agrário cheio de “informações falsas, desonestas, distorcidas por razões puramente ideológicas”. Isto para fazer com que a pesquisa aponte os pequenos produtores como responsáveis pelo sustento da produção nacional e aumentar a proporção do crédito concedido a eles em relação àquele oferecido à grande empresa ou agronegócio. A solução implícita é aumentar os incentivos à grande propriedade, já que ela é, muitas vezes prejudicada, como mostrado na afirmação de que “existe propriedade pequena no Paraná que é muito mais produtiva e rica do que uma grande fazenda no Centro-Oeste". Além disso, as informações equivocadas do IBGE dão prejuízo ao setor, porque não se pode fazer planejamento estratégico de investimento em cima de previsões falsas”.

Engraçado, mas a senadora associa a propriedade privada unicamente ao agronegócio quando afirma que desmoralizar este é atentar contra aquela. Há, na verdade, uma distorção genial em sua fala, quando ela afirma que o governo atual “acredita apenas no coletivo e não admite a produção individual, privada”. Então quer dizer que a produção do agronegócio não só é privada como individual??? A utilização do vocábulo “privado(a)” é historicamente recorrente na relação de apropriação do trabalho, mas identificar o processo produtivo (e não o seu resultado) de um latifúndio com um indivíduo é demais!

Como eu disse, a propriedade privada é o assunto principal da entrevista. Somados, vocábulos como “propriedade”, “proprietário”, “privado(a)” e “privatização” aparecem, separados ou conjugados, 16 vezes nas três páginas, ganhando de longe do segundo grupo semântico, que envolve palavras como “escravo”, “escravocrata” e “escravização”, que aparecem a metade das vezes. Tudo isso pra mostrar o quanto os proprietários – e não os despossuídos – são os verdadeiros prejudicados no Brasil.

O prejuízo dos proprietários é decorrente das políticas de um governo que, para a senadora, é indiscutivelmente de esquerda. Não só de esquerda, mas “radical”, “xiita”, “fundamentalista” e “saudosista”. Tal governo mantém uma constante “insegurança jurídica” ao não agir energicamente contra as invasões no campo, que são atos “terroristas” do “crime organizado” e que devem ser combatidos com a mesma intensidade que o tráfico de entorpecentes, por exemplo.

O legalismo só pode ser ferramenta de uma classe dominante, já que ela é quem tem a hegemonia no processo de institucionalização das leis. Neste caso, não é surpresa ver a senadora reivindicando uma “segurança jurídica” contra as ocupações de terra. A história é outra, contudo, quando se trata da legislação voltada para a proteção do trabalho.

Em relação à NR-31, a norma que regula a segurança e a saúde no trabalho rural, a senadora afirma que “cumprir 252 critérios é muito difícil”. Fiz questão de conferir a norma, que, segundo a Dona Kátia Abreu, tem regras “abusivas e difíceis de serem cumpridas à risca por todos os fazendeiros”, como, por exemplo, a de número 31.18.3, que proíbe a reutilização de água usada no trato de animais para uso humano. A saída acaba sendo, portanto, descumprir algumas normas. Mas e aí, onde fica a “segurança jurídica” do trabalhador?

Os movimentos sociais investem constantemente na defesa da desobediência civil como forma legítima de pressionar pela mudança das leis. A senadora parece reconhecer isto ao afirmar que os proprietários empregadores rurais acabam descumprindo várias normas da NR-31, que deve, assim, ser modificada. Por outro lado, as ocupações para pressionar pela EXECUÇÃO da Reforma Agrária (e não modificação da legislação) são “terrorismo” a ser tratado com mão-de-ferro!

Chegamos ao trabalho escravo defendido pela senadora. Segundo a mesma, qualquer item descumprido na NR-31 pode levar à condenação por trabalho escravo. Ora, se for assim, todo o tempo há trabalho escravo urbano, pois as CIPAs (Comissões Internas de Prevenção de Acidentes) constatam irregularidades nas empresas a cada hora. É claro, porém, que terei que concordar com ela que o trabalho pode ser considerado escravo se não forem respeitadas regras básicas de segurança do trabalho, que visam garantir o bem-estar mínimo das forças produtivas na reprodução do capital no campo.

A Sen. Kátia afirma que no seu ponto de vista “deveria prevalecer o bom senso”. Bom senso de quem? Obviamente o do empregador, não? Segundo ela, se as instalações forem boas o suficiente para filhos e netos dos proprietários, elas são adequadas para os funcionários. Acho que os trabalhadores da senadora não devem ter sido criados em instalações iguais à de seus filhos, porque se foram eles devem também apreciar cervejas exóticas como afirma fazer Iratã, o filho do meio e presidente da Juventude do DEM de Palmas, em seu twitter. Se tiveram a mesma educação o caso é pior, porque o filho mais velho, Irajá, foi preso no ano passado por desacato à autoridade ao se recusar a retirar seu automóvel do ponto de táxi onde tinha estacionado em Palmas. Este casou no último ano e o evento contou com a participação do Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Gilberto Kassab (DEM-SP), mas não li sobre algum peão da fazenda se fartando na festa.

Minha última impressão linguística retirada da entrevista foi a oposição entre “ideologia” e “ideais”. O termo “ideologia” já vem sendo demonizado pela direita há bastante tempo. Não é de hoje que se escutam pedidos pela não ideologização dos discursos políticos, como se houvesse um pragmatismo possível. Ainda assim, nunca tinha reparado que o termo “ideais” não carrega essa negatividade. Nota mental: ideal é bonito, ideologia é feio!!!

Pra fechar a entrevista – esse texto – resta um trecho de total ignorância histórica da senadora: “... fico orgulhosa quando meu nome é citado [como possível vice de Serra] por eu ser de um estado novo, o Tocantins, por ser mulher e por representar o setor agropecuário, que nunca teve muito espaço nas chapas majoritárias da política nacional”. Como se não bastassem anos de política do café-com-leite, depois mandatos de estanciários gaúchos como Getúlio e Jango, não acho que o Sarney tenha poucas terras no Maranhão. Mesmo o Fernando Henrique não teve uma fazenda ocupada?